Cerca de 10 mil famílias moram no Cantinho do Céu, complexo que está localizado às margens da Represa Billings, no Grajaú, no extremo sul de São Paulo.
Com 1,5 milhão de metros quadrados, o bairro foi apontado como uma referência mundial na reurbanização de favelas no 27º Congresso Mundial de Arquitetos, um dos principais eventos da categoria.
Esse reconhecimento é fruto de décadas de trabalho de alguns moradores como Floripes Andrade Fernandes, de 73 anos, uma das principais lideranças da região.
Nascida em Piratininga, no interior paulista, ela chegou ao local em 1986. Três anos depois, fundou a Associação Comunitária Cantinho do Céu com o objetivo de buscar mudanças na região, como saneamento básico, pavimentação, escola e serviços de saúde.
A aposentada decidiu criar a entidade como uma maneira de facilitar as reuniões com os moradores e também organizar eventos com políticos da época, como o então governador de São Paulo, Mário Covas (PSDB), morto em 2001.
A inspiração para o nome surgiu em um dia em que a aposentada estava andando na Rua dos Acordes e encontrou uma chácara chamada “Cantinho do Céu”.
Logo, pessoas que moravam na região do Grajaú souberam do novo bairro que estava se formando e alguns moradores ocuparam o terreno para construir suas casas.
Em 1991, a Polícia Militar e o Ministério Público de São Paulo fechou a entrada do local para derrubar as casas que foram construídas de maneira ilegal. Ao lado dos moradores, ela enfrentou as autoridades para que as famílias não perdessem o lar. “Quase fui presa e até hoje respondo processo. Estava defendendo o povo e fui tratada como se tivesse feito a ocupação”, reflete.
Na mesma época, levou dez ônibus ocupados por moradores do bairro na sede da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), para garantir a implementação de água e esgoto.
Com o apoio de abaixo-assinados, Florípes foi fundamental para a construção do CEU Navegantes, inaugurado em 2003, e da Unidade Básica de Saúde (UBS) – Cantinho do Céu, inaugurada em 2016. “Nunca vou dizer que corri sozinha, porque a população estava sempre comigo. Foi um conjunto de pessoas”, conta emocionada.
Florípes também passou por muito estresse. A pressão foi tamanha que, em 2009, ela sofreu três infartos seguidos e precisou ficar afastada dos projetos sociais. Após a recuperação voltou ao cargo na presidência em janeiro de 2021.
A luta mais urgente atualmente é para que todas as casas estejam regularizadas com documentação e IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) até 2023. A associação distribui leite, verduras e frutas, e doa cestas básicas para 250 famílias em situação de vulnerabilidade.
“Era o governo que deveria estar aqui no meu lugar ou pelo menos estar ajudando, assim como em outros. A gente não devia estar se matando para atender a população. Eles só vêm aqui quando precisam de voto”, ressalta.
Para o futuro, Florípes está na busca por ajuda financeira para reformar as salas de aula e para a compra de carteiras mais confortáveis para os estudantes do Mova (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos).
O programa, criado em 1989 durante a gestão de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, com o objetivo de combater o analfabetismo entre jovens e adultos, foi adotado pela associação para auxiliar os moradores que não tiveram a oportunidade de ter acesso à educação formal.
Atualmente, 120 estudantes são atendidos pelo Mova em quatro salas de aula. No entanto, no final do ano de 2021, o projeto estava ameaçado de encerrar, porque a associação está respondendo a 53 processos, de acordo com as informações divulgadas pelo portal JusBrasil.
“Conseguimos uma autorização para usar o espaço por tempo indeterminado. A Florípes está lutando para ver se consegue limpar o nome da Associação, mas enquanto isso não acontece, não tem o que fazer”, diz.
Uma das alunas é Lúcia Jesus, de 46 anos, que trabalha como diarista. Nascida no interior da Bahia, ela nunca foi matriculada em uma escola, porque tinha que cuidar dos irmãos mais novos. Por anos, carregou o trauma por ter sido proibida de estudar.
Ao chegar em São Paulo, situações cotidianas se tornavam motivo de amargura, como pegar um ônibus ou assinar o boletim escolar dos filhos. “É muito chato chegar em um canto e não saber ler nada, não saber anotar nem um telefone. Eu perguntava para os outros e tinha vergonha”, diz.
“Muitos alunos vêm aqui para sair de casa e ocupar a mente. Antes das aulas, muitos nem sabiam conversar, então a gente acompanha a evolução deles a cada dia”
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